Foi publicado, na mais recente edição da Revista Eletrônica de Direito Eleitoral e Sistema Político (REDESP), o artigo “Sistemas Eleitorais e Democracia Paritária”, da Doutora e Mestra em Direito Constitucional e sócia do escritório, Gabriela Araujo.
Você pode acessar o material em PDF no site da Revista Eletrônica de Direito Eleitoral e Político (REDESP). Ele também está disponível para ser lido, na íntegra, abaixo:
Considerando-se que as mulheres foram, por séculos, no Brasil e no mundo, proibidas até mesmo de votar ou participar ativamente de qualquer tomada de decisão pública coletiva, entende-se que a sua sub-representação nos postos de poder eletivos seja consequência direta de um machismo estrutural que dificilmente arrefecerá espontaneamente. Nesse sentido, o presente artigo propõe-se a analisar as principais normativas no direito internacional e nacional que buscam proteger os direitos políticos das mulheres, com ênfase em cotas e ações afirmativas para combater a desigualdade de gênero e acelerar a participação paritária nos espaços de representação político-institucional. Muito embora a média mundial de representação feminina nos parlamentos ainda seja baixa em comparação com a presença de mulheres no corpo social, há que se ponderar que, em alguns países, o nível de participação é mais elevado, se não já paritário. E é com base no estudo de alguns modelos de sistemas eleitorais do Direito Comparado que se pretende apresentar uma proposta que possa eventualmente ser adotada também pelo Brasil, rumo à tão almejada democracia paritária e inclusiva.
Palavras-chave: Sistemas eleitorais, democracia paritária, direitos políticos, mulheres, Direito Internacional.
Considering that women were, for centuries, in Brazil and around the world, prohibited from even voting or actively participating in any collective public decision-making, it is understood that their under-representation in elected positions of power is a direct consequence of a structural misogyny that is unlikely to subside spontaneously. In this sense, this article proposes to analyze the main regulations in international and national law that seek to protect women’s political rights, with an emphasis on quotas and affirmative actions to combat gender inequality and accelerate equal participation in spaces of political-institutional representation. Even though the global average of female representation in parliaments is still low compared to the presence of women in the social body, it must be considered that, in some countries, the level of representation is higher, if not already parity. And it is based on the study of some models of electoral systems in Comparative Law that we intend to present a proposal that could eventually also be adopted by Brazil, towards the much desired parity and inclusive democracy.
Keywords: Electoral Systems. Parity Democracy. Political Rights. Women. International Law.
Em 5 de outubro de 2023, a Constituição Federal Brasileira de 1988, também conhecida como “Constituição Cidadã”, completou 35 anos de existência, o que coincide com o maior período ininterrupto, na História do Brasil, em que as mulheres puderam exercer plenamente seus direitos políticos em igualdade formal com relação aos homens, se considerarmos que essa igualdade havia sido consolidada apenas na Constituição de 1946, quando o voto, que era obrigatório somente para os homens, também se tornou obrigatório para as mulheres.
Mesmo que se adotasse como ponto de partida a edição do Decreto n. 21.076, de 24 de fevereiro de 1932, quando as mulheres brasileiras não analfabetas (em sua esmagadora maioria brancas), com mais de quatrocentos anos de atraso em relação aos homens, finalmente foram autorizadas a votar (de forma facultativa), sabe-se que o exercício de seus tão recém conquistados direitos políticos foi interrompido por períodos de ditaduras e de retrocessos democráticos.
Infelizmente, o Brasil não está sozinho nesse abismo histórico e centenário imposto às mulheres, proibidas de exercerem qualquer tipo de liberdade pública por leis criadas pelo grupo minoritário – mas dominante – de homens majoritariamente brancos, cisgênero, cristãos, heterossexuais, detentores de renda e propriedades.
Na maioria dos países do Ocidente, inclusive nos berços das revoluções iluministas, as mulheres passaram a exercer algum tipo de direito ao voto – ainda que nem sempre em igualdade formal com relação aos homens – a partir do século XX: na Inglaterra, em 1918, nos Estados Unidos, em 1920, e, na França, somente em 1945.
Deveras, a desigualdade de gênero na política forjou a fundação da Democracia Moderna na Europa do século XVIII e já havia forjado a Democracia da Antiguidade dos gregos, desde o século V a.C., há mais de dois mil anos atrás.
Em ambos os casos, invocou-se estereótipos estigmatizadores dos papéis a serem desenvolvidos por cada um dos “sexos” na sociedade, baseados na lógica do patriarcado: enquanto as mulheres deveriam ficar restritas à esfera privada, às tarefas domésticas não remuneradas e aos cuidados de crianças, idosos e vulneráveis, por outro lado, aos homens caberia o livre e exclusivo gozo da vida pública, do poder político e do trabalho economicamente recompensado, como oficiais “provedores” do lar.
Isso porque, por muito tempo, convenientemente – para a manutenção da dominação masculina – pregou-se que, por força da natureza, o sexo feminino seria mais “frágil” e inferior em oposição ao sexo masculino, rotulando-se as mulheres como necessariamente dóceis, maternais, delicadas, submissas, dependentes, passivas, entre outras “qualidades” que as tornariam incapazes de qualquer atividade afeta às relações de força e poder na sociedade.
Daí a notoriedade que ganhou Simone de Beauvoir ao abrir o segundo volume de sua obra “O Segundo Sexo” com a afirmação: “Ninguém nasce mulher, torna-se mulher”. Ocorre que os papéis e estereótipos atribuídos ao gênero feminino não se dão em razão de seu sexo biológico de nascimento, mas sim decorrem de uma construção social, de milênios de opressão e restrição de liberdades e direitos civis e políticos que impuseram um abismo de desigualdades, discriminações e violências contra as mulheres, cujos reflexos se arraigaram de forma estrutural nas interrelações pessoais, familiares, econômicas, e nas próprias instituições.
Portanto, se a árdua batalha do movimento feminista pelo direito ao sufrágio universal só começou a surtir efeitos a partir da primeira metade do século XX, ainda assim, décadas depois, não se pode dizer que igualdade de participação necessariamente tenha se convertido em igualdade de representação.
A média mundial de mulheres eleitas nos parlamentos nacionais, de acordo com a União Interparlamentar, em outubro de 2023, era de apenas 26,7%, enquanto a média de representação feminina nos parlamentos das Américas era um pouco maior, de 34,7% . De todo modo, são percentuais baixos, se considerarmos que as mulheres são quase metade da população mundial e, em muitos países, como é o caso do Brasil, já compõem a maioria do eleitorado apto a votar.
Sob esse panorama generalizado de extrema desigualdade de gênero, o propósito do presente artigo é estudar como os direitos políticos das mulheres evoluíram desde a conquista do sufrágio universal, com foco em algumas das principais normativas, tanto no âmbito internacional como nacional, que buscam acelerar a ocupação paritária nos espaços de poder e de representação política.
Além disso, pretende-se estudar alternativas de sistemas eleitorais no Direito Comparado que poderiam ser mais favoráveis à implementação de políticas afirmativas efetivas para a concretização do ideal de uma democracia paritária e inclusiva no Brasil, posto que, como será demonstrado adiante, o modelo atualmente adotado na legislação brasileira está longe de alcançar resultados satisfatórios.
Em setembro de 2015, por ocasião da celebração do 70º aniversário da Organização das Nações Unidas (ONU), 193 Estados-membros reunidos em Nova Iorque acordaram em fixar 17 novos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável com 169 metas integradas e indivisíveis, em um plano de ação global a ser implementado até 2030.
Ao justificar a inclusão da igualdade de gênero como um dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) a serem atingidos para a Agenda 2030, a ONU entendeu que não é possível pensar em sustentabilidade quando ainda se nega a metade da humanidade o gozo de seus plenos direitos e oportunidades, inclusive no que se refere à participação política. É o que se extrai do seguinte trecho do documento “Transformando o Nosso Mundo: A Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável”:
A efetivação da igualdade de gênero e o empoderamento das mulheres e meninas dará uma contribuição essencial para o progresso em todos os Objetivos e metas. Alcançar o potencial humano e do desenvolvimento sustentável não é possível se para metade da humanidade continuam a ser negados seus plenos direitos humanos e oportunidades. Mulheres e meninas devem gozar de igualdade de acesso à educação de qualidade, recursos econômicos e participação política, bem como a igualdade de oportunidades com os homens e meninos em termos de emprego, liderança e tomada de decisões em todos os níveis. Vamos trabalhar para um aumento significativo dos investimentos para superar o hiato de gênero e fortalecer o apoio a instituições em relação à igualdade de gênero e o empoderamento das mulheres nos âmbitos global, regional e nacional. Todas as formas de discriminação e violência contra as mulheres e meninas serão eliminadas, incluindo por meio do engajamento de homens e meninos. A integração sistemática da perspectiva de gênero na implementação da Agenda é crucial.
Note-se que a integração sistemática da perspectiva de gênero na implementação de todos os demais objetivos e metas da Agenda 2030 é vista como crucial para o seu sucesso, nas três dimensões de desenvolvimento sustentável almejadas: econômica, social e ambiental.
Desta feita, o 5º ODS da Agenda 2030 da ONU fixou-se em “alcançar a igualdade de gênero e empoderar todas as mulheres e meninas”, o que exige:
5.5 Garantir a participação plena e efetiva das mulheres e a igualdade de oportunidades para a liderança em todos os níveis de tomada de decisão na vida política, econômica e pública. (...)
5.c Adotar e fortalecer políticas sólidas e legislação aplicável para a promoção da igualdade de gênero e o empoderamento de todas as mulheres e meninas em todos os níveis.
É consabido que as desigualdades de gênero na política e nos espaços de poder são parte de um conjunto de discriminações e violências sofridos pelas mulheres em diversos outros aspectos de suas relações interpessoais, sociais e profissionais.
Não é à toa que a terceira mulher a receber o Prêmio Nobel de Economia, desde que foi criado, em 1968, tenha sido a economista norte-americana Claudia Goldin, em outubro de 2023, justamente em razão de seus estudos sobre desigualdade de gênero no mercado de trabalho.
A pesquisa de Claudia Goldin levanta temas que há anos vêm sendo objeto de preocupação da comunidade internacional: a dupla jornada acumulada pelas mulheres, que permanecem como as principais responsáveis pelos trabalhos domésticos não remunerados e cuidados com os filhos e idosos, enquanto precisam também construir carreiras profissionais fora do lar, onde enfrentam disparidades salariais e menos oportunidades de ascensão com relação aos homens.
Como já dito alhures, e os estudos de Claudia Goldin também ressaltam, a discriminação dos papéis sociais e familiares atribuídos a homens e mulheres tem um efeito cascata em todas as demais searas, com reflexos extremamente nocivos à evolução civilizatória.
Nesse sentido, tanto a ONU como os demais organismos internacionais regionais já se debruçaram em inúmeras conferências e encontros sobre dados alarmantes de violência de gênero e estagnação na evolução dos direitos e liberdades das mulheres, tendo chegado à conclusão de que os Estados-membros somente conseguirão combater essa realidade quando passarem a adotar políticas e legislações efetivas para promover a igualdade de gênero e o empoderamento feminino em todos os níveis.
Com efeito, os esforços internacionais não são de hoje. Dois grandes marcos foram a (i) Convenção sobre a Eliminação de todas as formas de Discriminação contra a Mulher (CEDAW), em 1979; e, há quase três décadas, em 1995, a (ii) IV Conferência das Nações Unidas sobre a Mulher, realizada em Pequim, onde 189 (cento e oitenta e nove) Estados-membros da ONU, incluindo o Brasil, aderiram a um compromisso intitulado “Declaração e Plataforma de Ação da IV Conferência Mundial Sobre a Mulher’’, também conhecido simplesmente como Declaração e Plataforma de Ação de Pequim (ou Beijing).
Entendendo que a igualdade na tomada de decisões é essencial para o empoderamento das mulheres, e que “o empoderamento da mulher e sua total participação, em base de igualdade, em todos os campos sociais, incluindo a participação no processo decisório e o acesso ao poder, são fundamentais para a realização da igualdade, do desenvolvimento e da paz”, o documento coloca, entre as medidas a serem obrigatoriamente adotadas pelos Estados-membros, políticas afirmativas capazes de alcançar uma representação de paridade das mulheres e dos homens em todos os espaços de poder governamentais. Apenas a título de exemplo, vale a leitura de um trecho da Declaração, in verbis:
Objetivo estratégico G.1 Adotar medidas para garantir às mulheres igualdade de acesso às estruturas de poder e ao processo de decisão e sua participação em ambos.
190. Medidas que os governos devem adotar:
a) comprometer-se a estabelecer a meta de equilíbrio entre mulheres e homens nos organismos e comitês governamentais, assim como nas entidades da administração pública e no judiciário, incluídas, entre outras coisas, a fixação de objetivos específicos e medidas de implementação, a fim de aumentar substancialmente o número de mulheres e alcançar uma representação de paridade das mulheres e dos homens, se necessário mediante ação afirmativa em favor das mulheres, em todos os postos governamentais e da administração pública;
b) adotar medidas, inclusive, quando apropriado, nos sistemas eleitorais, para estimular os partidos políticos a incorporarem as mulheres a postos públicos eletivos e não eletivos, na mesma proporção e nas mesmas categorias que os homens;
c) defender e promover a igualdade de direitos das mulheres e dos homens em matéria de participação nas atividades políticas e de liberdade de associação, inclusive afiliação a partidos políticos e sindicatos;
d) examinar o impacto dos sistemas eleitorais sobre a representação política das mulheres nos organismos eletivos e considerar, quando procedente, a possibilidade de ajustar ou reformar esses sistemas; (...) (grifos nossos)
Se, em 1979, os Estados-partes, incluindo o Brasil, já reconheciam, por meio da Convenção sobre a Eliminação de todas as formas de Discriminação contra a Mulher, que “a participação máxima da mulher, em igualdade de condições com o homem, em todos os campos, é indispensável para o desenvolvimento pleno e completo de um país, o bem-estar do mundo e a causa da paz’’, note-se que, a partir de 1995, com a Plataforma de Ação de Pequim, passou-se a ressaltar a necessidade de políticas afirmativas em favor das mulheres, em todos os poderes instituídos, o que pode também se traduzir em cotas temporárias e alterações direcionadas nos sistemas eleitorais, ao menos até o alcance da tão almejada paridade.
Na mesma direção, entre inúmeros compromissos internacionais que surgiram ao longo dos anos em prol da paridade de gênero nos espaços de poder e da adoção efetiva de políticas afirmativas, pode-se citar o Consenso de Quito, documento adotado durante a X Conferência Regional sobre a Mulher da América Latina e do Caribe, em 2007; o Consenso de Brasília, assinado na XI Conferência Regional sobre a Mulher da América Latina e do Caribe, em 2010; o Consenso de Santo Domingo, compromisso assumido na XII Conferência Regional sobre a Mulher da América Latina e do Caribe, em 2013; e a “Estratégia de Montevidéu para a Implementação da Agenda Regional de Gênero no Âmbito do Desenvolvimento Sustentável até 2030’’, que resultou da XIII Conferência Regional sobre a Mulher da América Latina e do Caribe, em 2016, e que tem como um de seus objetivos: “estabelecer mecanismos que garantam a inclusão paritária da diversidade de mulheres nos espaços de poder público de eleição popular e designação em todas as funções e níveis do Estado”.
Em 28 de novembro de 2015, na cidade do Panamá, o Parlamento Latino-Americano e do Caribe (Parlatino) aprovou, na sua Assembleia Geral de 2015, um Marco Normativo para consolidar a Democracia Paritária, reconhecendo que a paridade é uma das forças fundamentais da democracia, sendo imperioso, portanto, atingir a igualdade substantiva no poder, na tomada de decisões e nos mecanismos de representação social e política para erradicar a exclusão estrutural das mulheres.
De acordo com referido documento, baseado em dados, pesquisas e densos estudos, ainda falta muito para se atingir níveis satisfatórios de participação feminina nos espaços decisórios, não obstante os avanços até então alcançados na região da América Latina e do Caribe se devam à “inclusão de ações afirmativas – especialmente mediante a adoção de cotas de gênero nas legislações de diversos países – e, nos últimos anos, a aposta em medidas que levem à paridade (50-50)”.
Sob essa premissa, o Brasil é um dos Estados-membros que se comprometeram a implementar cotas e políticas afirmativas que ajudem a acelerar o objetivo da igualdade substantiva em suas instituições, mas, como será demonstrado adiante, o que existe até o presente momento na legislação brasileira ainda se mostra insuficiente, inexistindo medidas que implementem a paridade nos parlamentos, principal impulsor de participação popular e representatividade nos Estados democráticos.
Nas últimas Eleições Gerais, ocorridas em outubro de 2022, as mulheres brasileiras corresponderam a 52,66% do eleitorado, mas foram apenas 33,83% candidatas, e isso ainda graças à Lei n. 9.504, de 30 de setembro de 1997, que, em seu artigo 10, §3º, garante que, para as candidaturas proporcionais ao Poder Legislativo, cada partido ou federação “preencherá o mínimo de 30% (trinta por cento) e o máximo de 70% (setenta por cento) para candidaturas de cada sexo”.
Imperioso destacar, contudo, que as cotas de reserva de candidaturas para mulheres, no Brasil, somente passaram a ser aplicadas pela maioria dos partidos políticos mais de dez anos depois da publicação da Lei n. 9.504/97, ou Lei das Eleições, como é conhecida popularmente.
Ocorre que a redação original do artigo 10, §3º, da lei supramencionada, estabelecia que cada partido ou coligação deveria “reservar o mínimo de trinta por cento e o máximo de setenta por cento para candidaturas de cada sexo” (grifos nossos). Com base na palavra “reservar”, a interpretação adotada pelos partidos políticos era de que não seria necessário efetivamente apresentar mulheres candidatas nas chapas proporcionais, desde que suas vagas não fossem ocupadas por candidaturas masculinas. Ficariam, destarte, literalmente vagos os espaços reservados às mulheres.
Ou seja, a título de exemplo, suponha-se que um partido tivesse o direito de registrar 10 candidaturas (100%) para disputar as eleições municipais em determinada Câmara Municipal. Pela redação original da Lei n. 9.504/97, a interpretação dada era de que seria possível apresentar 7 candidaturas de homens (70%) e nenhuma de mulher, já que as 3 vagas (30%) que seriam destinadas às suas candidaturas estariam reservadas, embora não preenchidas efetivamente por candidatas.
Apenas com a edição da Lei n. 12.034, de 29 de setembro de 2009, que o artigo 10, §3º, da Lei n. 9.504/97, foi alterado para trocar o termo “deverá reservar” por “preencherá”, e só a partir de então – em 2009! –, que a Justiça Eleitoral passou a barrar o registro de chapas 100% masculinas, com o indeferimento logo no protocolo do pedido de registro do DRAP (Demonstrativo de Regularidade de Atos Partidários) pelos partidos políticos. É o que se observa do excerto do julgado abaixo colacionado:
Registro de candidaturas. Percentuais por sexo. 1. Conforme decidido pelo TSE nas eleições de 2010, o § 3º do art. 10 da Lei nº 9.504/97, na redação dada pela Lei nº 12.034/2009, estabelece a observância obrigatória dos percentuais mínimo e máximo de cada sexo, o que é aferido de acordo com o número de candidatos efetivamente registrados. 2. Não cabe a partido ou coligação pretender o preenchimento de vagas destinadas a um sexo por candidatos do outro sexo, a pretexto de ausência de candidatas do sexo feminino na circunscrição eleitoral, pois se tornaria inócua a previsão legal de reforço da participação feminina nas eleições, com reiterado descumprimento da lei. 3. Sendo eventualmente impossível o registro de candidaturas femininas com o percentual mínimo de 30%, a única alternativa que o partido ou a coligação dispõe é a de reduzir o número de candidatos masculinos para adequar os respectivos percentuais, cuja providência, caso não atendida, ensejará o indeferimento do demonstrativo de regularidade dos atos partidários (DRAP). [...] (Ac. de 6.11.2012 no REspe n. 2939, rel. Min. Arnaldo Versiani.)
Já nas Eleições de 2010, portanto, os partidos que não conseguiram atender à proporcionalidade de no mínimo 30% de candidaturas de um gênero e no máximo 70% de candidaturas de outro gênero, foram barrados pela Justiça Eleitoral já no ato do registro, sendo instados a fazer os ajustes necessários, sob pena de indeferimento do DRAP.
A solução seria, destarte, ou preencher de fato as vagas com candidaturas femininas, ou diminuir o número de homens candidatos, até atingir a proporcionalidade almejada, certo? Lamentavelmente, porém, não foi essa a conduta adotada por uma parte considerável de dirigentes partidários.
O que ficou muito conhecido e difundido na mídia brasileira como candidaturas fictícias, “fantasmas” ou “laranjas”, em verdade, são fraudes às cotas legislativas de gênero que muitas agremiações partidárias passaram a cometer simplesmente para não investir em candidaturas femininas viáveis, desde que foram obrigadas a de fato preencher no mínimo 30% das candidaturas nas chapas proporcionais com mulheres.
De acordo com a jurisprudência do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), para se aferir a fraude às cotas de gênero, alguns indícios são considerados, como “votação ínfima, inexistência de atos efetivos de campanha, prestações de contas zeradas ou notoriamente padronizadas entre as candidatas”, ao que se pode acrescentar também a realização de campanha para candidatos homens do mesmo partido ou federação, o repasse de recursos para candidaturas masculinas, entre outras ações que possam denotar o preenchimento meramente pro forma das vagas reservadas às mulheres, com a finalidade exclusiva de burlar a exigência legislativa, sem qualquer pretensão do partido em de fato investir esforços para a eleição dessas candidatas tidas como “laranjas”.
Sobre o tema, vale trazer à baila um trecho da ementa do acórdão prolatado por ocasião do julgamento da ADI 6.338/DF, pelo Supremo Tribunal Federal:
Fraudar a cota de gênero – consubstanciada no lançamento fictício de candidaturas femininas, ou seja, são incluídos, na lista de candidatos dos partidos, nomes de mulheres tão somente para preencher o mínimo de 30% (trinta por cento), sem o empreendimento de atos de campanhas, arrecadação de recursos, dentre outros – materializa conduta transgressora da cidadania (CF, art. 1º, II), do pluralismo político (CF, art. 1º, V), da isonomia (CF, art. 5º, I). 8. A perpetração da fraude às cotas permite às agremiações o lançamento de maior número de candidatos, sem o efetivo adimplemento do percentual mínimo estipulado em lei, violando os valores constitucionais acima mencionados e tem efeito drástico e perverso na legitimidade, na normalidade e na lisura das eleições e na formação da vontade do eleitorado (CF, art. 1º, parágrafo único e art. 14, caput, § 9º). (ADI 6.338/DF, rel. Min. Rosa Weber, Tribunal Pleno, sessão virtual, DJE de 4.4.2023).
Não há outra explicação senão a discriminação de gênero para que os dirigentes partidários, majoritariamente homens, resistam tanto em viabilizar candidaturas femininas, especialmente se for levado em consideração que, apesar de todas as barreiras enfrentadas, as mulheres representaram, nas Eleições de 2022, 46% (quarenta e seis por cento) das filiadas aos partidos políticos.
Além da cota de reserva de candidaturas, a legislação nacional prevê mais uma política afirmativa que vem sendo reiteradamente descumprida pelos partidos: trata-se da obrigatoriedade de que pelo menos 5% (cinco por cento) dos recursos públicos do Fundo Partidário recebidos sejam aplicados na “criação e manutenção de programas de promoção e difusão da participação política das mulheres, criados e executados pela Secretaria da Mulher ou, a critério da agremiação, por instituto com personalidade jurídica própria presidido pela Secretária da Mulher, em nível nacional” (artigo 44, inciso V, da Lei n. 9.096/95).
Levantamento do jornal O Globo, realizado em 2022, revelou que os partidos políticos foram condenados pelo TSE a devolver aproximadamente R$ 65,1 milhões aos cofres públicos em função de irregularidades no uso da verba do fundo partidário de 2016, sendo que quase todos não teriam comprovado a aplicação de 5% dos recursos em programas de promoção e difusão da participação política das mulheres. Em 2020, segundo notícia divulgada pelo próprio TSE, 23 partidos políticos já haviam sido penalizados por não terem conseguido comprovar o investimento mínimo de 5% de recursos do Fundo Partidário na participação política de mulheres, quando do julgamento das contas referentes ao ano de 2014. Em 2019, ainda conforme o TSE, 25 partidos sofreram sanções pelo mesmo motivo, com relação às contas anuais de 2013.
Desde o advento da Lei n. 12.034/2009, que incluiu o inciso V ao artigo 44 da Lei das Eleições (Lei n. 9.096/95), que a maioria das legendas partidárias vem sendo incapaz de direcionar meros 5% de todo o montante dos recursos públicos que recebem do Fundo Partidário para programas que incentivem a participação política de mulheres. E por essa razão, além de desaprovação de contas, a Justiça Eleitoral vinha aplicando a sanção prevista no §5º do artigo 44 da Lei n. 9.096/95:
§5º O partido político que não cumprir o disposto no inciso V do caput deverá transferir o saldo para conta específica, sendo vedada sua aplicação para finalidade diversa, de modo que o saldo remanescente deverá ser aplicado dentro do exercício financeiro subsequente, sob pena de acréscimo de 12,5% (doze inteiros e cinco décimos por cento) do valor previsto no inciso V do caput, a ser aplicado na mesma finalidade.
Sem embargo, a resistência dos partidos políticos nacionais em aceitar cumprir minimamente com as cotas legislativas de gênero e políticas afirmativas com as quais o Brasil se comprometeu internacionalmente é tamanha, que conseguiram aprovar duas autoanistias, uma por meio da Lei n. 13.831, de 17 de maio de 2019, e outra, pasmem, por meio da Emenda Constitucional n. 117, de 05 de abril de 2022, proibindo a Justiça Eleitoral de aplicar sanções às agremiações fraudadoras.
Em um cenário de escandalosa violência política institucional cometida contra as mulheres neste país, não é de se estranhar que, malgrado estejam em maioria na base do eleitorado brasileiro, desde que conquistaram seus primeiros direitos políticos, há mais de 90 anos, as mulheres não tenham ainda conseguido chegar nem a 18% dos assentos no Congresso Nacional.
Aliás, até as Eleições de 2018, a Câmara dos Deputados sempre teve mais de 90% de homens em sua composição, mesmo com as cotas de reservas de candidaturas para mulheres vigendo desde 1997, com mais rigor a partir de 2009.
Para melhor entender a sub-representação feminina no parlamento brasileiro, o que, no mais, é uma métrica importante para se evidenciar o nível de participação política de mulheres no país, veja-se o quadro elaborado com base em dados das nove Eleições Gerais ocorridas desde a promulgação da Constituição Federal de 1988, com o percentual das mulheres deputadas eleitas, em um universo total de 513 assentos:
Se for adicionado o recorte racial à tabela acima, os números são ainda mais assustadores. Em 2018, foram eleitas apenas 13 mulheres negras deputadas federais, um percentual de 2,5% do total do parlamento. Já em 2022, esse número subiu para 29 mulheres negras eleitas, isto é, 5,65% do total, percentual ainda pífio se comparado à representatividade de mulheres negras na população brasileira em idade ativa (PIA), que é de 28,3%, o maior grupo social quando se considera os fatores gênero/raça.
Com 422 homens (82,26%) – em sua grande maioria brancos – deputados federais, em contraposição a apenas 91 mulheres (17,7%) deputadas federais, em outubro de 2023, o Brasil ocupava a posição 131º no ranking de participação feminina em parlamentos nacionais, na tabela divulgada mensalmente pela União Parlamentar. Muito abaixo dos demais países da América Latina e atrás também de países de tradições mais conservadoras e conhecidos pelas desigualdades sociais de gênero, como Paquistão (110º), Arábia Saudita (116º) e Somália (119º).
Parece ruim, mas poderia ser pior. Muito provavelmente as mulheres não teriam ultrapassado ainda a marca de 10% de assentos na Câmara dos Deputados, se não fossem algumas decisões jurisprudenciais que acabaram por impulsionar as candidaturas femininas já nas Eleições de 2018, quando houve um aumento percentual de 51% em relação a 2014: saltou-se de 51 para 77 deputadas federais eleitas.
Foi em 2018 que o Supremo Tribunal Federal (ADI 5617/DF) e o Tribunal Superior Eleitoral (Consulta TSE n. 0600252-18/DF) proferiram decisões paradigmáticas, entendendo que as mulheres têm direito a cotas tanto de financiamento (Fundo Partidário e Fundo Especial de Financiamento de Campanha) como de tempo de visibilidade na propaganda eleitoral gratuita no rádio e na TV, na mesma proporção da apresentação de suas candidaturas, considerado o mínimo de 30%. E mais, desde 2020, ambas as Cortes Superiores também decidiram que tais cotas de financiamento e de propaganda devem ser distribuídas para pessoas negras, na exata medida proporcional de suas candidaturas (ADPF 738/DF e Consulta TSE n° 0600306-47/DF).
As leis até então existentes obrigavam os partidos políticos a apresentarem pelo menos 30% de mulheres candidatas, mas isso não era garantia de que essas candidatas receberiam apoio efetivo de seus partidos. A maioria dos recursos de campanha e do tempo de propaganda nos meios de comunicação era distribuída para as candidaturas masculinas.
Em decorrência das decisões que passaram a exigir real investimento das agremiações partidárias em candidaturas femininas, é que o Congresso Nacional, dominado por homens e movido pela lógica de seus partidos, mobilizou-se em torno da Emenda Constitucional n. 117, de 05 de abril de 2022, que em seus artigos 2º e 3º anistiou partidos políticos fraudadores de cotas de gênero e raça.
Todavia, para compensar o escândalo, a mesma EC n. 117/2022, em seu artigo 1º, inseriu no texto da Constituição parte das cotas de gênero e políticas afirmativas já conquistadas por lei ou jurisprudência, in verbis:
Art. 1º O art. 17 da Constituição Federal passa a vigorar acrescido dos seguintes §§ 7º e 8º: Art. 17. (...) § 7º Os partidos políticos devem aplicar no mínimo 5% (cinco por cento) dos recursos do fundo partidário na criação e na manutenção de programas de promoção e difusão da participação política das mulheres, de acordo com os interesses intrapartidários. § 8º O montante do Fundo Especial de Financiamento de Campanha e da parcela do fundo partidário destinada a campanhas eleitorais, bem como o tempo de propaganda gratuita no rádio e na televisão a ser distribuído pelos partidos às respectivas candidatas, deverão ser de no mínimo 30% (trinta por cento), proporcional ao número de candidatas, e a distribuição deverá ser realizada conforme critérios definidos pelos respectivos órgãos de direção e pelas normas estatutárias, considerados a autonomia e o interesse partidário” (NR).
É impossível não perceber a árdua batalha travada pelas mulheres brasileiras não apenas para avançar na ocupação de espaços de poder e representação política, mas especialmente para fazer valer e evitar retrocessos com relação aos poucos direitos até aqui conquistados.
Nesse ritmo, o país fica cada vez mais distante de cumprir com o 5º Objetivo de Desenvolvimento Sustentável da Agenda 2030 da ONU, e em débito com os demais muitos compromissos internacionais em prol da democracia paritária de há muito tempo assumidos.
Como será demonstrado a seguir, há como reverter a situação, desde que haja vontade política para aplicar as recomendações internacionais e realizar alguns ajustes no sistema eleitoral, com base em modelos de sucesso no Direito Comparado, onde seis países já atingiram paridade em seus parlamentos.
Amiúde se referiu neste artigo ao ranking de participação feminina nos parlamentos alimentado e divulgado pela União Interparlamentar. E mais uma vez impera se socorrer a ele para destacar o diferencial dos países que atingiram a paridade de representação política em suas Câmaras Baixas, o equivalente à Câmara dos Deputados brasileira.
Em 2003, o Instituto Internacional para a Democracia e Assistência Eleitoral (International Idea), em conjunto com a Universidade de Estocolmo, iniciaram um projeto de pesquisa sobre os impactos de cotas eleitorais de gênero no incremento de participação feminina de mulheres, ao qual a União Interparlamentar se juntou em 2009, com a criação de uma base de dados com os vários tipos de cotas existentes no mundo.
De acordo com a pesquisa supramencionada, pelo menos metade dos países dispõem de cotas de gênero para suas eleições, que podem basicamente ser classificadas em três principais tipos: (i) reservas legislativas de candidaturas ou vagas nas listas eleitorais apresentadas pelos partidos; (ii) reserva de assentos no parlamento; e (iii) cotas voluntárias de partidos políticos para apresentarem um número determinado de candidaturas femininas.
Ademais, as cotas de gênero alcançam maior efetividade naqueles países que adotam sistemas eleitorais proporcionais para o Poder Legislativo, com listas fechadas apresentadas pelos partidos políticos, “de modo que se possa estipular cotas de candidaturas para as mulheres nessas listas, obrigando-se os partidos a incluí-las de forma alternada com os candidatos do sexo masculino no topo da lista (mandatos de posição)’’.
Nessa esteira, importa analisar os modelos adotados pelos sete únicos países do mundo que, em outubro de 2023, contam com paridade de gênero em seus parlamentos: Ruanda, Cuba, Nicarágua, Andorra, México, Nova Zelândia e Arábia Saudita.
Ruanda, que é o primeiro lugar disparado da lista, com 61,3% de mulheres deputadas, prevê em sua Constituição, desde 2003, reserva de assentos aliadas a outras políticas afirmativas em órgãos de tomada de decisão, incentivando a composição de conselhos de participação popular paritários:
Entre as políticas implementadas para o estímulo a participação das mulheres na arena política em Ruanda, a que mais contribuiu diz respeito ao modelo de política de discriminação positiva adotado, com a reserva de 30% dos assentos, associada ao sistema eleitoral, no qual uma parcela razoável das cadeiras é preenchida por eleitas ou indicadas por conselhos de província.
A Nicarágua, com 51,7% de mulheres no parlamento, adota listas paritárias fechadas a serem apresentadas pelos partidos políticos, em que cada gênero é colocado de forma alternada, o que é previsto tanto na lei eleitoral, como na própria Constituição do país.
Em Andorra, embora as mulheres só tenham conquistado o direito ao voto em 1970 e o de se candidatar em 1973, hoje elas já representam 50% do parlamento, graças às cotas voluntárias adotadas pelos partidos políticos. Algo semelhante ocorre com Cuba, que ocupa o segundo lugar no ranking de participação feminina entre os parlamentos do mundo, com 55,7% de mulheres, malgrado o governo não admita oficialmente a existência de cotas:
Assim, o governo cubano exerce controle sobre a representatividade das mulheres a partir da Comissão de Candidatos, de forma que havia um tratamento preferencial para as mulheres nas escolhas dos candidatos para as eleições da Assembleia Nacional. Ou seja, foi na Comissão de Candidatos que a questão do desequilíbrio de gênero estava sendo abordada. Dessa forma, não podemos afirmar que há um sistema normativo e formalizado que garante uma determinada proporção para as mulheres no âmbito legislativo do país, já que o Partido Comunista cubano age de tal modo que ele determina, por si só, quando e onde a composição de gênero de um determinado órgão eleitoral precisa ser ajustada.
O México, atualmente com 50% de mulheres na sua Câmara dos Deputados, há 20 anos estava em uma situação semelhante à do Brasil de hoje, em termos de sub-representação feminina na política.
Em 2003, as mulheres mexicanas ocupavam 23% dos assentos no parlamento nacional (um pouco mais do que o Brasil de 2023, que conta com 17,7% de deputadas federais). Na época, a legislação do México previa apenas 30% de cotas de gênero para candidaturas, tal qual a atual legislação brasileira, com o único diferencial que o sistema proporcional mexicano é de lista fechada, e não aberta, como no Brasil.
A partir de 2008, foram sendo adotadas novas políticas afirmativas e as cotas foram gradativamente sendo incrementadas, ao mesmo passo em que se intensificaram as sanções aplicadas pela justiça eleitoral aos partidos fraudadores das cotas. Até que, em 2014, a paridade de gênero para os postos no Poder Legislativo foi incluída na Constituição mexicana (art. 41), bem como foi promulgada a Lei Geral de Instituições e Procedimentos Eleitorais (LGIPE), que “obrigou os partidos políticos a promoverem e garantirem a paridade de gênero nas candidaturas ao Congresso da União, aos Congressos dos Estados e à Assembleia Legislativa do Distrito Federal (Artigo 232, Artigo 233)’’. Em 2019, avançou-se ainda mais, com a Reforma Constitucional que implementou a paridade em todos os órgãos de poder: legislativo, executivo e judiciário.
Prosseguindo na análise de países com paridade em seus parlamentos, tem-se a Nova Zelândia e os Emirados Árabes Unidos, empatados no ranking de participação feminina na política disponibilizado pela União Interparlamentar, com exatos 50% de mulheres deputadas.
Apesar de os partidos neozelandeses adotarem o modelo voluntário de cotas em suas listas de candidaturas para o Poder Legislativo, talvez a paridade se explique pela tradição menos machista do país, primeiro do mundo a reconhecer o direito ao voto feminino, ainda em 1893, e que já contou com três mulheres como primeiras-ministras.
Já nos Emirados Árabes Unidos, foi o Decreto Presidencial n. 01 de 2019 que estabeleceu reserva de 50% de assentos para mulheres no Conselho Federal Nacional. A composição imediatamente anterior a esse Decreto, era de apenas 9 (nove) mulheres em um parlamento com 40 (quarenta) assentos – 22,5% de sua composição.
Como se pode depreender do exposto, a esmagadora maioria dos países que atingiram a paridade de participação feminina em seus parlamentos, e as duas dezenas de demais países que estão quase chegando lá, com um percentual de mulheres acima de 40%, adotam algum tipo de cota de gênero, sendo as mais efetivas, de fato, aquelas que garantem reserva de assentos ou paridade em listas proporcionais fechadas apresentadas pelas agremiações partidárias.
É fato que a média mundial de participação feminina na política (26.7%), tendo como base a métrica de representação de mulheres nos parlamentos nacionais, ainda é muito baixa. Todavia, os países que realmente levaram a sério os compromissos internacionais assumidos com relação à democracia paritária, em especial a partir da Declaração e Plataforma de Ação de Pequim, em 1995, comprovaram que a igualdade de gênero nos espaços de poder é possível e pode ser alcançada com uma certa rapidez.
Observe-se o exemplo do México, que por longos anos insistiu nas cotas de reservas de 30% de candidaturas, e só avançou em termos de representatividade política feminina quando implementou uma série de medidas conjuntas de cotas de gênero de 50% mulheres e 50% homens em todas as instituições, o que ficou conhecido, usando-se o termo espanhol, como paridad en todo.
No Brasil, onde o sistema para eleição de postos no Poder Legislativo é proporcional de lista aberta, a hipótese mais radical seria realizar uma reforma constitucional e eleitoral que promovesse o fortalecimento dos partidos e estabelecesse também listas fechadas, o que permitiria o estabelecimento de paridade já na apresentação das candidaturas, alternadas, desde o topo, de forma paritária: uma mulher, um homem, uma mulher, um homem, e assim por diante.
Entretanto, o mais possível, sem que seja necessário alterar o modelo de formação de listas – de abertas, para fechadas – seria, de fato, garantir reserva de assentos no parlamento. Mais uma vez, o ideal, por óbvio, é que se tenha 50% dos assentos destinados aos homens e 50% dos assentos destinados às mulheres.
Porém, tendo em vista a já esposada resistência dos partidos políticos brasileiros em aceitar as mulheres até mesmo como candidatas viáveis, e considerando que a lógica das estruturas patriarcais desses partidos tem reflexos no Congresso Nacional, o que há de mais factível, no momento, é o estabelecimento de algum tipo de reserva de assentos para as mulheres, ainda que não os tão almejados 50%.
E, nesse sentido, em avançado debate na Câmara dos Deputados, tramita a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) n. 9, de 2023, que dispõe sobre “reserva de assentos para candidaturas femininas na Câmara dos Deputados, Assembleias Legislativas, Câmara Legislativa e Câmaras Municipais; estabelece parâmetros e condições para concessão de anistia a partidos políticos e estabelece a obrigatoriedade de destinação pelas legendas de recursos financeiros a candidaturas de pessoas pretas e pardas”.
Ainda que não seja aprovada, essa proposta de emenda à Constituição é um bom exemplo das dificuldades enfrentadas para se dar efetividade às tímidas cotas de gênero existentes na legislação brasileira e explica em parte as razões de o Brasil permanecer puxando para baixo a média das Américas de participação feminina nos parlamentos.
Em verdade, o texto original da PEC 9/2023 pretendia apenas anistiar, mais uma vez, todos os partidos políticos que não “destinaram os valores mínimos em razão da raça e o acréscimo proporcional ao mínimo de 30% para as campanhas eleitorais das candidaturas do sexo feminino nas eleições de 2022”, como que prorrogando os efeitos da Emenda Constitucional n. 117/2022, além de inovar com a criação de anistias ainda mais nefastas do que as concedidas em 2022.
Devido ao escândalo provocado na opinião pública, é que o relator se sentiu compelido a apresentar novos substitutivos que contemplaram a reserva de assentos para mulheres no parlamento, após notável atuação e mobilização da minoritária, mas extremamente organizada e incisiva, bancada feminina na Câmara dos Deputados.
No entanto, o artigo 6º da PEC n. 9/2023, de acordo com o último substitutivo apresentado pelo relator, em 25 de setembro de 2023, propõe a reserva, para as mulheres, de apenas 20% das cadeiras da Câmara dos Deputados, Assembleias Legislativas, Câmara Legislativa do Distrito Federal e Câmaras Municipais.
Ora, a expectativa é de que a Câmara dos Deputados deve caminhar, naturalmente, nas próximas eleições, até o patamar de 20% ou mais de mulheres em sua composição, o que faria essa reserva de assentos, em tese, desnecessária, embora em algumas Assembleias Legislativas e em muitas Câmaras Municipais do país ainda se esteja longe desse percentual de representatividade feminina.
De fato, o que está proposto na Proposta de Emenda à Constituição n. 9, de 2023, é um percentual baixo se comparado às medidas afirmativas adotadas em países onde a democracia paritária está mais avançada e até considerando os tratados internacionais com os quais o Brasil se comprometeu.
Por outro lado, nunca se avançou tanto ou se chegou tão perto de se obter algum tipo de reserva de assento para mulheres nas Casas Legislativas brasileiras. E aí está a importância da PEC n. 9/2023: as negociações estão na mesa e as cartas já foram jogadas!
Aprovado o texto como está, ainda que apenas com 20% de cotas de gênero, é possível alterar o percentual no futuro, até chegar aos 50%, pois as estruturas do sistema eleitoral estarão reorganizadas e preparadas para avançar. Caso não se consiga aprovar o texto específico da PEC n. 9/2023 e ela seja rejeitada, um novo texto, melhorado, está com todos os caminhos abertos para ser apresentado. Não há mais como retroceder nesse debate.
Imprescindível, portanto, que o Brasil se inspire nas experiências de sucesso já implementadas em países com os mais diversos sistemas eleitorais. E o momento já passou de agora, era para ter sido ontem. A democracia paritária é possível, se houver vontade política e mobilização popular. Avante!
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