“Quem mandou matar Marielle e Anderson?” é a pergunta que completa, nesta terça-feira (14/3), cinco anos ecoando nas vozes de familiares, amigos, autoridades, ativistas e pela sociedade civil como um todo. Os assassinatos da vereadora do Rio de Janeiro e de seu motorista continuam sendo investigados e, de lá para cá, o caso já deu muitas reviravoltas até as prisões dos ex-PMs Ronnie Lessa, acusado de ser o atirador, e Élcio Queiroz, apontado como a pessoa que dirigia o veículo em que Lessa estava.
Trocas de ao menos cinco delegados na Polícia Civil, crise interna no Ministério Público do Rio de Janeiro (MPRJ), a descoberta das entranhas de grupos milicianos em Rio das Pedras, a suposta vinculação da família Bolsonaro com o crime diante de ligações com integrantes desses grupos e um pedido de federalização das investigações feita pela Procuradoria-Geral da República (PGR) que foi negado pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ) em 2020.
“São cinco anos de luta, cinco anos cobrando que o Estado brasileiro responda quem mandou matar Marielle e por quê. São cinco anos de saudades e é um luto que não consegue se concluir porque a gente não consegue ter essa resposta”, desabafou a viúva e arquiteta Monica Benício, que se elegeu vereadora no Rio de Janeiro pelo PSOL em 2020 e tem como uma de suas bandeiras dar continuidade ao legado da companheira ao reapresentar projetos que Marielle tinha na Câmara Municipal.
A elucidação do crime foi um compromisso firmado pelo ministro da Justiça e Segurança Pública (MJSP) Flavio Dino já na posse do comando da pasta, em janeiro. “É uma questão de honra do Estado brasileiro empreender todos os esforços possíveis e cabíveis, e a Polícia Federal assim atuará, para que nós saibamos quem matou Marielle e quem mandou mandar Marielle Franco naquele dia no Rio de Janeiro”, discursou.
A promessa também foi firmada diretamente à família da vereadora e a sua irmã, a jornalista Anielle Franco, que assumiu o cargo de ministra da Igualdade Racial do governo Lula.
Em 22 de fevereiro, Flavio Dino determinou a abertura de inquérito pela Polícia Federal (PF) para colaborar com as investigações da Polícia Civil e do MPRJ. Ou seja, é uma apuração paralela, em que a PF pode auxiliar o que os órgãos estaduais já estão fazendo.
De acordo com reportagem do jornal O Estado de S. Paulo, esse foi um caminho alternativo que Dino encontrou para não atropelar o trabalho dos promotores do caso, garantir a atuação da PF, já que a federalização do caso foi negada, e responder às pressões para resolução do crime. Os detalhes sobre como será essa colaboração não foram divulgados, apenas que se trata de um procedimento interno sem prazo para ser concluído.
Em 2018, o então ministro da Justiça Raul Jungmann também havia determinado a abertura de uma investigação na Polícia Federal a fim de apurar “suspeitas de que uma organização criminosa estaria atuando com o objetivo de atrapalhar as investigações do assassinato da vereadora”. A Ponte questionou a assessoria da pasta sobre esse inquérito e no que se diferencia do que foi aberto neste ano, mas não houve resposta.
Para Monica Benício, a iniciativa é positiva. “É um aceno muito importante, é um aceno de um governo federal preocupado com a elucidação desse caso em relação a um governo estadual que há cinco anos, meia década, não conseguiu responder”, afirma. “É um momento de otimismo, é um momento de esperança, é um momento de perspectiva de que finalmente a gente possa ter novos rumos tanto no âmbito democrático do Estado de Direito quanto no âmbito das investigações do assassinato da Marielle.”
Tanto Monica quanto a família da parlamentar eram contra a federalização do caso na época em que estava em discussão no STJ. O Instituto Marielle Franco e a Coalizão Negra por Direitos fizeram uma campanha chamada “Federalização Não!” pelo receio de que, caso ficassem a cargo da Polícia Federal, as investigações não seriam imparciais pelo risco de intervenção do então presidente Jair Bolsonaro no órgão. “O próprio Sergio Moro [então ministro da Justiça e hoje senador pelo União Brasil do Paraná] disse, ao pedir sua exoneração, que o Bolsonaro queria fazer intervenção direta na Polícia Federal, o próprio Bolsonaro disse que na época que mandou agente da Polícia Federal interrogar o Ronnie Lessa e que ele mesmo teria cópia desse inquérito”, aponta Monica.
Ela sustenta ainda as suspeitas que recaíram sobre a família Bolsonaro, já que Ronnie Lessa morava no mesmo condomínio que o clã no Rio de Janeiro e a filha dele já namorou o filho 04 do ex-presidente, Jair Renan Bolsonaro. Também houve uma confusão de versões a respeito de um porteiro do condomínio que afirmou e depois negou que, no dia do crime, Élcio Queiroz tentou falar com Bolsonaro, na época deputado federal e estava em Brasília.
“É extremamente escandaloso você considerar que o então presidente da República, que é a antítese do que a Marielle representa na política, manda interrogar um investigado pelo caso, sendo que ele foi o único que nunca se manifestou sobre a morte dela, não falava nada a respeito do caso, pelo contrário, ainda fazia pouco caso da representatividade, da importância e da memória da Marielle”, prossegue.
Com a troca de gestão na presidência, a federalização do caso ainda divide opiniões. Em entrevista à Carta Capital no mês passado Anielle Franco declarou que a questão ainda seria discutida. “Em maio, a gente vai ter um seminário internacional com promotores e pessoas que trabalham com isso” afirmou à revista. “Eles virão ao Brasil também para que a gente possa debater sobre esse tema”.
Já a mãe de Marielle, a advogada Marinete da Silva, disse na última sexta-feira (10/3) à Agência Brasil que é contrária a uma possível federalização. “Não interessa para família, para mim. O crime foi no Rio de Janeiro. Acho que a Polícia Federal tem que estar junto, como sempre esteve. Muito mais agora com o [ministro Flávio] Dino. Mas a solução tem que partir do Rio de Janeiro. Foi lá que o crime aconteceu. O governo tem que dar uma resposta para mim, para a família, para a sociedade, para os eleitores da Marielle. Fui contra a federalização e fiz a campanha”, declarou.
Federalizar uma investigação e contar com a colaboração da Polícia Federal para apurar um caso são situações diferentes.
O coordenador do Programa Justiça Internacional da ONG Justiça Global, Eduardo Baker, explica que o ministro da Justiça pode requisitar a abertura de uma apuração paralela pela Polícia Federal com base na Lei 10.446/2002, que dispõe sobre “infrações penais de repercussão interestadual ou internacional que exigem repressão uniforme”. Essa é a lei, inclusive, citada na portaria pelo ministro Flavio Dino ao determinar a abertura de inquérito no caso Marielle.
Nesse rol de crimes estão sequestro, cárcere privado, extorsão mediante sequestro, formação de cartel, furto, roubo ou receptação de cargas e contra instituições financeiras, falsificação, corrupção, adulteração ou alteração de produto destinado a fins terapêuticos ou medicinais e venda, crimes praticados na internet que difundam conteúdo misógino e infrações relativas à violação a direitos humanos que o Brasil se comprometeu a reprimir em tratados internacionais.
Essa tipo de apuração é diferente da federalização porque o caso continua a ser investigado e processado na esfera estadual, ou seja, segue sobre responsabilidade da Polícia Civil, do Ministério Público Estadual e do tribunal estadual. A PF atua como colaboradora ou auxiliar. “É importante ter essa distinção porque não necessariamente a Polícia Federal entrar na história significa que quem vai jogar é a Justiça Federal”, afirma. “É uma medida mais célere que não depende da PGR nem do STJ”, prossegue ao apontar as duas autoridades responsáveis por avaliar um pedido de federalização.
Já o Incidente de Deslocamento de Competência (IDC), como é chamada tecnicamente a federalização, transfere toda a competência do caso para a Justiça Federal e os órgãos estaduais passam a não ter mais responsabilidade ou atuação no caso. Esse mecanismo passou a existir formalmente com a Emenda Constitucional (EC) 45 de 2004, época em que houve uma reforma do judiciário, e está disposto no artigo 109, parágrafo 5º, da Constituição Federal.
De acordo com Gabriela Araujo, advogada e professora de Direito Constitucional da PUC-SP, o IDC surge para proteger defensores de direitos humanos. “A ideia é de que em algumas regiões, seja por falta de aparato das polícias ou por contaminação política do sistema de justiça local, seria necessário federalizar, puxar a competência para a Polícia Federal e para a Justiça Federal, porque haveria mais neutralidade, mais eficiência”, explica.
Em 1996, o então presidente Fernando Henrique Cardoso havia enviado uma proposta parecida ao Congresso, em que a Justiça Federal fosse obrigada a julgar todos casos de violações de direitos humanos, mas acabou não aprovada sob o argumento de ferir o princípio de juiz natural do caso, ou seja, em que o acusado é processado pelo tribunal previamente determinado. Por exemplo, no caso de um homicídio ocorrido em São Paulo e o réu não ter foro privilegiado, ele é julgado pelo tribunal paulista estadual.
O IDC tem alguns critérios para ser solicitado:
A infração/crime é uma grave violação de direitos humanos;
Possibilidade de o Estado brasileiro ser responsabilizado internacionalmente por não assegurar o cumprimento de tratados internacionais de direitos humanos que é signatário;
Demonstração de total incapacidade, desinteresse, descaso e/ou ausência de vontade política de resolução por parte das autoridades estaduais.
Além disso, apenas a Procuradoria-Geral da República é quem pode fazer o pedido para que o caso seja federalizado. Essa solicitação é feita ao STJ, que pode acatá-la ou não.
Daniel Cerqueira, diretor de Programas da ONG Due Process of Law Foundation (DPLF), aponta, por exemplo, o artigo 28 da Convenção Americana de Direitos Humanos, que é ratificada pelo Brasil desde 1992 e prevê a garantia de uma série de direitos civis e políticos. “Essa disposição estabelece que o Estado não pode alegar sua estrutura federal para descumprir uma obrigação proveniente da Convenção de Direitos Humanos. Essa é uma réplica do que diz basicamente a Convenção de Viena sobre o direito dos tratados, de que a divisão interna de um país não pode ser um óbice para cumprimento das obrigações internacionais”, explica.
No caso Marielle, apesar de reconhecida como grave violação de direitos humanos, a ministra relatora Laurita Vaz concluiu que “não há sombra de descaso, desinteresse, desídia ou falta de condições pessoais ou materiais das instituições estaduais encarregadas de investigar, processar e punir os eventuais responsáveis pela grave violação a direitos humanos”. Os oito ministros seguiram o entendimento dela e reconheceram “notório empenho” das esquipes da Polícia Civil e do Ministério Público do Rio de Janeiro para elucidar o caso.
Não há prazo nem momento específico em que o pedido de federalização pode ser feito. Mesmo se negado, outras solicitações podem ser feitas. Desde 2004, quatro de 24 IDCs foram aceitos pelo STJ, sendo o mais recente deles acatado em agosto do ano passado: a investigação sobre a Chacina do Parque Bristol, em que cinco jovens foram mortos após serem baleados por homens encapuzados, na zona sul de São Paulo, em 14 de maio de 2006 — o massacre faz parte dos Crimes de Maio daquele ano.
Essa decisão veio seis anos depois que o então procurador-geral da República Rodrigo Janot entrou com um pedido para transferir a apuração do caso para a Polícia Federal, atendendo a uma solicitação feita em 2009 por familiares das vítimas, pela Defensoria Pública e pela ONG Conectas Direitos Humanos.
Os ministros entenderam que havia indícios de graves violações de direitos humanos porque a chacina faz parte de um dos maiores massacres brasileiros. Entre os dias 12 e 21 de maio de 2006, policiais e grupos de extermínio paramilitares — que testemunhas e outros indícios apontam serem formados também por policiais — mataram 425 pessoas e foram responsáveis pelo desaparecimento de outras quatro, os ataques continuaram após alguns dias, matando mais 80 civis. As mortes foram uma vingança contra os ataques da facção criminosa Primeiro Comando do Capital (PCC), que mataram 59 agentes públicos no período, entre policiais, guardas civis e policiais penais.
Existe a possibilidade de responsabilização internacional, já que as entidades entraram com pedidos na Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), da Organização dos Estados Americanos (OEA), denunciando graves violações dos casos e falha nas investigações, o que também foi reconhecido pela Terceira Seção do STJ, que julgou o IDC.
“Foi uma série de mortes provocadas por intervenção policial, em localidades específicas, com proceder muito semelhante e você ainda tem os responsáveis por promover a investigação policial [MPSP] antecipando uma análise de mérito e parabenizando [os policiais], dispensando ou arquivando as investigações”, pontua a coordenadora do Programa de Enfrentamento à Violência Institucional da Conectas Carolina Diniz. “Essa sequência de ações fez com que a probabilidade de apuração e responsabilização no âmbito estadual fosse muito diminuta.”
Contudo, nem todos os pedidos relativos aos Crimes de Maio foram aceitos. Em 2021, o procurador João Paulo Lordelo Guimarães Tavares arquivou o pedido de federalização das investigações sobre as mortes de 12 pessoas na Baixada Santista, feito em 2010, ao argumentar que as falhas na condução dos inquéritos policiais já estão sendo apuradas pelo Grupo de Atuação Especial de Combate ao Crime Organizado (Gaeco) Núcleo de Santos do Ministério Público de São Paulo, o que é contestado pela Conectas, pela Defensoria de estado e pelo movimento indepentente Mães de Maio.
“São casos muito semelhantes, do mesmo momento histórico, mas com desfechos completamente diferentes muito em razão do perfil de quem estava a frente da PGR em cada época”, avalia Carolina Diniz, já que nenhum outro órgão pode fazer um pedido de IDC diretamente ao STJ além da PGR. As entidades apenas podem provocar a Procuradoria a ingressar com a solicitação.
Gabriela Araújo, da PUC-SP, e Eduardo Baker, da Justiça Global, apontam que existe um movimento para aumentar o número de legitimados que podem ingressar com pedido de IDC, ou seja, autoridades competentes para tirar a exclusividade da PGR nesse caso, mas é algo que ainda não foi para frente. “O PGR não é obrigado a pedir um IDC, a avaliação é exclusiva dele, então não existe um prazo para que ele peça ou não nem do STJ de quando vai julgar”, sinaliza Gabriela.
Além disso, apesar de o direito internacional considerar violações de direitos humanos como crimes imprescritíveis, o ordenamento jurídico brasileiro segue as suas próprias leis de prescrição de crimes. Então, quanto maior a morosidade da tramitação de um pedido de federalização, uma possível nova investigação pode ser prejudicada.
E se a responsabilização internacional e/ou julgamento do caso já aconteceu, o IDC também enfraquece. Um exemplo é o pedido de federalização da Chacina da Favela Nova Brasília, que foi negado na mesma semana em que os policiais militares acusados foram absolvidos no júri popular, em agosto de 2021, pelas mortes de 13 pessoas ocorridas em 18 de outubro de 1994 na favela Nova Brasília, uma das 15 comunidades que compõem o Complexo do Alemão na zona norte da cidade do Rio de Janeiro. Na época, uma operação que envolveu entre 40 e 80 policiais civis e militares ocorreu na comunidade sob a alegação de busca de armas e drogas, mas dias antes uma delegacia da região tinha sido metralhada por traficantes. 26 pessoas teriam sido mortas ao total entre 1994 e 1995.
O STJ argumentou que o fato de os réus terem sido processados e julgados demonstra que as instituições fluminenses estão funcionado. Também pontuou que Estado brasileiro estava cumprindo as determinações da condenação, de 2017, pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, como investigar o caso de forma independente, indenizar e prestar auxílio psicológico e psiquiátrico aos familiares, dentre outras obrigações.
O primeiro pedido de federalização admitido ocorreu em 2010 e diz respeito ao assassinato do vereador de Itambé (PE) Manoel Mattos, que aconteceu um ano antes. Ele denunciava grupos de extermínio com participação de policiais que atuavam em Pernambuco e na Paraíba e foi morto a tiros dentro de uma casa de praia por homens encapuzados. O caso gerou repercussão internacional. Em 2015, o sargento reformado da PM da Paraíba Flávio Inácio Pereira, apontado como um dos mandantes da execução, e José da Silva Martins, acusado como o autor dos disparos, foram considerados culpados em júri popular na Justiça Federal.
A Justiça Global foi uma das entidades que pediu à PGR a federalização do caso. “Um dos principais argumentos era que tinha uma ação tramitando no sistema interamericano de direitos humanos sobre o caso do Manoel, então existia um risco de o Brasil ser responsabilizado internacionalmente”, explica Eduardo Baker. “Esse tem sido um dos principais, se não o principal, argumento para que o deslocamento de competência seja possível.”
Em 2014, o STJ determinou a federalização de três de nove investigações de crimes ocorridos entre 2005 e 2012 que envolviam desaparecimento, tortura e assassinatos com suposto envolvimento de grupo de extermínio formados por policiais em Goiás a pedido do então procurador Rodrigo Janot. Os ministros acataram três casos de desaparecimentos e um de tortura, ocorridos entre 2008 e 2010, por entenderem que as autoridades estaduais não estavam empregando esforços suficientes para elucidá-los, além de reconhecerem como graves violações de direitos humanos. Nesse episódio, não havia ação na esfera internacional, mas o relator Jorge Mussi entendeu a exigência de cumprimento da Convenção Americana de Direitos Humanos.
No caso dos desaparecimentos de Pedro Nunes da Silva Neto e Cleiton Rodrigues, o procurador Raphael Perissé pediu o arquivamento, que foi acatado pelo juiz federal Eduardo Luiz Rocha Cubas em 2018. A suspeita é de que os dois teriam sido mortos a mando de fazendeiros em Alvorada do Norte (GO). A Polícia Federal chegou a pedir a suspeição do procurador por ele ter feito uma declaração de apoio a um dos policiais investigados em uma audiência pública, o que não aconteceu. De acordo com reportagem do jornal O Globo, o procurador e o juiz já se manifestaram a favor de Bolsonaro.
A Justiça Federal também absolveu, em 2018, 17 policiais militares acusados de torturar quatro homens e uma mulher e ocultar o cadáver de Célio Roberto Ferreira de Souza, um dos desaparecidos. O juiz federal Alderico Rocha Santos entendeu que não havia provas suficientes para condenação. Já no caso da tortura contra Michel Rodrigues da Silva, 10 policiais militares foram condenados em 2019 pelo juiz federal Leão Aparecido Alves.
De acordo com a corte, o terceiro IDC admitido, também em 2014, foi o assassinato do promotor Thiago Faria Soares, morto a tiros a caminho de Itaíba, agreste pernambucano, em 2013, por suspeita de grupo de extermínio. Segundo a Polícia Federal, motivação seria por disputa de terras, já que o promotor atuou na desapropriação de uma fazenda. Em 2017, três homens foram condenados a penas entre 20 e 50 anos de prisão.
Como parte desses casos envolvem a participação de policiais, Carolina Diniz, da Conectas, salienta o dever constitucional do Ministério Público, tanto na esfera estadual quanto federal, de realizar o controle externo da atividade policial. “Acho que se o Ministério Público [estadual] quisesse fazer um trabalho de controle externo iria para além de um caso concreto e começaria a produzir dados, por exemplo com as audiências de custódia, de onde vêm os batalhões e delegacias com maiores denúncias de violência policial, onde estão os casos de corrupção policial”, afirma.
“O Ministério Público Federal também acaba se omitindo dessa função porque ele poderia coordenar uma força-tarefa, ele tem câmaras específicas de controle externo da atividade policial que deveria trabalhar em conjunto com os Ministérios Públicos Estaduais. Tem alguns estados em que isso funciona, mas são atividades muito pontuais e não a longo prazo”, critica.
Além de ser um instrumento excepcional, o IDC, na visão dos especialistas é pouco empregado por duas questões: estrutura federal, já que a PF não teria como investigar todos os casos, e a própria perspectiva que o sistema de justiça tem.
“Eu vislumbro que existe um corporativismo judicial no Brasil”, pontua Daniel Cerqueira, da DPFL. “Esperar a PGR fazer um pedido para o STJ e o STJ aceitar a federalização implica em reconhecer a incompetência, a incapacidade ou a vontade de autoridades estatais, e pensemos que muitos membros do STJ vêm do Poder Judiciário de estados, muitos já foram desembargadores em algum momento. Então existe uma espécie de leniência de não se mexer nesse formigueiro.”
Gabriela Araújo, professora da PUC-SP, aponta o cálculo político de a PGR ingressar com pedido e o STJ avaliar é “muito subjetivo”. “O clamor social pode ajudar a pressionar, mas como vai se tratar de um caso muito grave, ele pode avaliar [a federalização] como último caso”, analisa.
Para ela, a questão de interferência política na Polícia Federal foi uma situação específica. “Havia muitas denúncias sérias de que o presidente poderia estar interferindo diretamente na Polícia Federal, então realmente não interessava à família porque, se havia morosidade na polícia local, havia um risco se fosse federalizado. Mas o correto é federalizar quando existem critérios objetivos, previstos na Constituição. Não tem vontade de governo, foi uma situação excepcional, quem tem que avaliar é a justiça”, aponta.
Carolina Diniz, da Conectas, entende, no caso dos Crimes de Maio, que a federalização busca trazer uma independência que não existe na esfera estadual quando os casos têm participação de agentes estatais. “As instâncias estaduais precisariam se reorganizar para dar conta de promover investigações independentes e promover a responsabilização adequada de seus agentes pela violação de direitos humanos. É uma resposta de uma incapacidade, um reconhecimento de que o Estado foi incapaz e que as vítimas foram deixadas ali sem qualquer respaldo, são criminalizadas e violentadas novamente”, critica.