Maioria do eleitorado brasileiro, as mulheres foram o centro do primeiro debate entre presidenciáveis, realizado no último domingo. Não pela apresentação de políticas públicas que solucionem questões urgentes como o alto número de feminicídios no país (uma mulher é morta no Brasil a cada sete horas apenas por ser mulher), mas pelos ataques grosseiros do presidente e candidato à reeleição Jair Bolsonaro (PL) à jornalista e colunista do GLOBO Vera Magalhães e à candidata Simone Tebet (MDB); pela resistência de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) a comprometer-se com a paridade de gênero em um ministério caso seja eleito; e pelo erro de Felipe D’Ávila (Novo) ao chamar a patrulha Maria da Penha (mecanismo adotado em alguns estados para verificar o cumprimento de medidas protetivas contra abusadores) de “polícia Maria da Paz”.
A discriminação e a violência política de gênero, tão simbólicas no debate, são tema do livro “Mulheres na política brasileira: desafios rumo à democracia paritária participativa”, que a advogada, professora e doutora em Direito Constitucional Gabriela Shizue Soares de Araújo lança neste sábado, dia 3, na Livraria Janela, no Rio de Janeiro. Traçando um histórico dos direitos civis e políticos femininos desde a fundação da democracia, passando pelas cotas e ações afirmativas no Brasil, ela propõe mecanismos para que as mulheres participem plenamente da política brasileira. E faz um prognóstico do resultado das eleições 2022:
— É triste ver que, mais uma vez, seremos comandadas por políticos que não entenderam a importância de combater a discriminação e a violência de gênero no país.
Passado o primeiro debate entre presidenciáveis, é correto dizer que os candidatos não estão preparados para discutir os temas de interesse das brasileiras?
Eles precisam estudar mais. No Brasil, a gente tem a cultura de discutir a luta de classes, passando por cima dos aspectos de raça e de gênero. Mas a luta não é só de classes, é preciso ter interseccionalidade. Não adianta conquistar igualdade econômica se as mulheres continuarem a ser subjugadas em casa ou tratadas como objetos sexuais. É triste ver que, mais uma vez, seremos comandadas por políticos que não entenderam a importância de combater a discriminação e a violência de gênero no país.
Eles não entenderam a ponto de a discriminação e a violência de gênero estarem presentes no próprio debate?
Discriminação e violência são padrões de gênero que mostram a pouca importância dada à perspectiva das mulheres. É como se nós não pertencêssemos a determinados espaços e a nossa palavra não tivesse a mesma importância que a dos homens. No debate, Simone Tebet e Soraya Thronicke foram as últimas escolhas dos outros candidatos para as perguntas, e elas também preferiram começar perguntando uma a outra, o que é um acolhimento. Foi um debate cheio de símbolos.
Também foi simbólico que candidatas de fora da esquerda tenham se declarado feministas?
É ótimo que o feminismo seja pauta do debate. Mas por que não perguntaram para os homens o que eles acham do feminismo, quais as políticas públicas para as mulheres que eles têm para propor?
O debate trouxe a paridade de gênero para o centro da eleição. Afinal, ter um ministério dividido entre homens e mulheres basta, independente de quem sejam e quais pastas elas comandem?
É importante ter a paridade. No caso do Congresso, por exemplo, apenas 15% dos parlamentares são mulheres. Quantos entre os homens que lá estão têm preparo técnico? Não questionamos a qualidade técnica dos homens, mas quando pensamos em mulheres exigimos que elas tenham diploma de Harvard. Exigir isso é abrir portas para um pensamento machista recorrente: “coloquei um homem branco porque não encontrei mulheres qualificadas”. Eu defendo que o espaço seja ocupado enquanto tentamos ultrapassar essa barreira abissal.
Acredita, então, que paridade de gênero deve ser política pública?
Sim. Quando atingirmos a paridade, teremos que qualificar todos os que estão lá, mulheres e homens — e isso é igualdade de gênero. O Congresso e o Judiciário precisam das perspectivas das mulheres, sendo elas de direita ou de esquerda. Elas são quase a metade dos filiados a partidos políticos no Brasil. Não é possível, portanto, que entre esses filiados não existam mulheres qualificadas para ocupar, por exemplo, ministérios. Há ainda a questão da representatividade: o que uma menina negra periférica vai tirar do debate entre presidenciáveis? Que aquele lugar pertence aos homens brancos, não é para ela.
Cotas e ações afirmativas são importantes para reverter essa desigualdade?
No Brasil, mulheres e pessoas negras foram durante séculos proibidas por lei de usufruir de seus direitos políticos, enquanto os homens brancos os exerciam livremente. Foi naturalizado que essas pessoas não pertenciam à esfera pública, e isso se sedimentou na sociedade brasileira de tal forma que a barreira que elas enfrentam é muito maior. Quando se naturalizar que as mulheres também pertencem ao espaço público, as cotas poderão ser encerradas.
A Lei da Eleições, de 1997, estabeleceu cotas, mas o Brasil ocupa atualmente a 142ª no ranking global de participação feminina na política.
Para que sejam eficazes, precisamos de sanções. Por que temos cotas de 30% para candidaturas femininas? Porque durante muito tempo as mulheres não conseguiam ser candidatas. Em 2009, o TSE precisou mudar a redação da Lei das Eleições, trocando “vagas reservadas” por “vagas preenchidas”, porque os partidos continuaram não apresentando candidaturas femininas. E, apesar disso, essas vagas começaram a ser preenchidas com laranjas. Com multas e cassação de candidaturas, o TSE começou a lidar com isso. Mas, sabemos, o Congresso quase 90% masculino resiste.
Não seria melhor, no caso do Congresso, reservar assentos? A Bolívia, que desde 2010 reserva pelo menos metade de todos os cargos eletivos para mulheres, tem um parlamento 53% feminino.
Sim, a reserva de assentos nos parlamentos não pode ser burlada. Nesse caso, o pensamento do partido é “tenho que investir em candidaturas femininas competitivas porque metade dos assentos no parlamento estão reservados para mulheres”. Além disso, a estrutura das cotas tem que ser pensada. Por que saímos de menos de 10% de mulheres no Congresso para 15% nas eleições de 2018? Porque o TSE decidiu que se temos que ter ao menos 30% de candidatas mulheres, também temos que ter ao menos 30% dos recursos repassados a elas.
Além das sanções aos partidos, quais as outras medidas que podem ser aplicadas?
Posso listar o financiamento das campanhas e o empoderamento das secretarias de mulheres dentro dos partidos. Seria interessante também que as câmaras legislativas colocassem em seus regimentos uma norma classificando a violência de gênero como quebra de decoro, e que a quebra de decoro enseja a perda de mandato. Os partidos também poderiam ter em seus estatutos uma cláusula em que não admitem como filiados pessoas acusadas ou condenadas por violência política de gênero ou por violência contra a mulher. Dessa forma, nenhum agressor de mulheres poderia se candidatar, nenhum se elegeria. A política pública é a sociedade dizendo “nós não aceitamos isso”.
A lei 14.192, aprovada no ano passado, trata da violência política contra a mulher. A ausência do termo “gênero” não é uma negligência com as pessoas transgênero, vítimas frequentes da violência política?
Os casos de violência política não são enfrentados com a devida gravidade no Brasil. Muitas parlamentares dizem que o Congresso é tão conservador que não passa nada que tenha a palavra “gênero”. A Lei Maria da Penha é uma exceção. Se você pesquisar o texto da Constituição, não vai encontrar a palavra “gênero”. Por isso, o TSE soltou uma resolução dizendo que onde se lê “sexo” nas leis eleitorais, o tribunal interpretará como “gênero”.
Impossível não concluir que a democracia é misógina.
Da forma como ela está posta, sim, é misógina. A democracia foi construída, desde sua fundação na Grécia, para que a lei tire direitos das mulheres. Mais tarde, no século XVIII, quando Rousseau fundou o conceito de Estado moderno que usamos ainda hoje, escreveu que todos são cidadãos, mas as mulheres pertencem à esfera privada. Elas seriam representadas no parlamento por seus maridos, pais e irmãos. Enfim, não adianta colocar na Constituição que homens e mulheres são iguais perante a lei se essa igualdade não for construída. E ela só será construída com cotas, ações afirmativas, um compliance de diversidade e gênero nos partidos e uma reforma legislativa.